Por Raquel Loof, estudante de psicologia e Kauã Shimabukuro, publicitário e pesquisador de cultura, militantes da Revolução Socialista em Curitiba/PR.
Falar sobre amor e afeto é questionar todas as estruturas que estamos inseridos. Bell Hooks em seu livro “Tudo sobre amor”, provoca a reflexão sobre o amor como transgressor das estruturas de opressão (patriarcal, racista, LGBTQIAPN+fóbica e etc.) e um afeto poderoso e necessário para pensarmos uma sociedade mais empática, igualitária e diversa. Para isso precisamos debater a necessidade desse afeto ser revolucionário e repensado junto com os valores que desejamos construir socialmente.
Essa posição de repensar o amor é crucial, pois, o sistema capitalista reforça o sentido individual, egoísta e apático do afeto, se opondo a sua essência de cuidado, empatia e acolhimento. Isso é perceptível quando pensamos que pessoas dissidentes dos "valores morais" dessa sociedade cisgênero, patriarcal, LGBTQIAPN+fóbica, racista e intolerante religiosa são colocadas no papel de "outra coisa", aquele à qual eu não reconheço como um ser humano, aquele que não é "normal" e deve ser negado dos seus direitos, da sua dignidade e até mesmo da sua existência. Isso nos enfraquece enquanto sociedade, nos adoece e em instâncias gera a reprodução de diversos tipos de violências sejam físicas ou psicológicas. Esse apontamento de como o capitalismo molda e reforma esse "amor" egoísta e que se distancia do sentido que nós, revolucionários, buscamos atribuí-lo, pode ser observado quando demonstramos que o patriarcado enxerga esse "amor" como forma de violência e domínio sobre o corpo feminino. São inúmeros os casos de violência doméstica, sexual e casos de feminicídios. Segundo o portal Fonte Segura [1], do Fórum de Segurança, só em 2023 foram 1.463 vítimas de feminicídio. Ainda complementar a esses dados, a pesquisadora Lourdes Maria Bandeira, apontou na sua publicação "Crimes de feminicídio ocorridos no Distrito Federal em 2019" [2], disponível no portal de Notícias da UnB (Universidade de Brasília), que dos 32 casos analisados, a maioria foi motivada pela relação de domínio e não aceitação do fim da relação. Nesse contexto, os criminosos viam a vítima como um objeto que os pertencia.
Precisamos apontar também sobre como o Estado burguês tem um papel relevante em dominar esses corpos. O patriarcado que é uma das bases de sustentação desse sistema, não só é representado em forma de violência física como também produz uma imagem do que é “ser mulher” e priva esses corpos de direitos básicos, como uso de contraceptivos, aborto seguro, legal e gratuito — que garantem a vida de pessoas que gestam — e da própria autonomia dos seus corpos e as suas vidas. Mecanismos como a PL 1904/24, equipara o aborto a crime de homicídio, além de ser uma violação grave dos direitos humanos das pessoas que gestam, ainda condena crianças violentadas sexualmente, sendo totalmente repudiável e na contramão a qualquer senso de amor que desejamos construir. O mesmo acontece com a LGBTQIAPN+fobia, o amor “incondicional” encontra a sua barreira e limitação quando não está dentro dos valores morais cristãos e fundamentalistas representados na sociedade, endemonizando e desumanizando qualquer corpo que não se encontre na heteronormatividade e cisgeneridade.
Essa sociedade aceita todas as formas de amar? Ou ela tem consigo um projeto e um molde de família que luta constantemente para manter?
Uma resposta comum à pauta do aborto é a preocupação dos fundamentalistas com a proteção da vida, mas quando essa criança nasce ela tem garantias públicas de um desenvolvimento pleno? Ela tem um lar seguro e com acessos a direitos básicos para se desenvolver? Ela tem os pais presentes e com tempo hábil para auxiliar no processo de desenvolvimento dessa criança? E chamamos atenção para os pais, no plural, por criticarmos que a maior parte do senso coletivo de amor familiar, nesse sistema, é jogado nas costas da mãe, que faz uma tripla jornada de trabalho, é responsabilizada pela educação das crianças e designada como centro de reabilitação psicológico da família por ser “naturalmente” mais atenciosa, ignorando qualquer construção histórica dos papéis de gênero e atribuindo o discurso à natureza biológica. Quando falamos de amor familiar não podemos cometer o erro de analisar superficialmente o ambiente e os valores sociais e apenas culpar os indivíduos, mas compreendermos a necessidade de discutir a formação de famílias das mais diversas formas e elevar discussões como a jornada de trabalho que numa sociedade socialista deve habilitar esse núcleo familiar a dispor de tempo de qualidade para desenvolver e formar essas crianças. É fundamental a análise dos efeitos da violência gerenciada por esse sistema e como isso contribui para o desenvolvimento das crianças na sua compreensão do que é o amor e não apenas no ambiente familiar, mas também nas escolas, em locais públicos, redes sociais e conteúdos midiáticos.
O cuidado e a responsabilidade na formação das crianças deve ser uma responsabilidade coletiva, da sociedade como um todo, todavia, como isso é possível em uma sociedade que reforça o senso de individualidade e ignora o ambiente e os aspectos sociais que deveriam ser considerados? Que discute de forma rasa a criminalidade, o racismo das instituições, a desigualdade social gerada e gerida por esse sistema que só se preocupa em formar mais mão de obra barata?
Se torna indispensável dar significado a palavra amor baseado na aceitação e no respeito genuíno por si próprio e pelo outro, buscando deixar de lado convicções construídas e apoiadas num sistema que precisa de mão de obra barata, diversas violências para garantir a sua hegemonia e o controle de massas. Para se ter um amor ético e comprometido com as questões sociais, com a aceitação e o afeto pelo outro, precisamos romper com essa estrutura que normaliza a violência e a apatia. Também não podemos idealizar o sentimento a ponto de cairmos na romantização de acreditar que tudo se resolve com amor no seu sentido abstrato e hollywoodiano, que vamos combater a opressão com uma visão idealista de que o amor salva o mundo. Por isso a importância de caracterizarmos o amor como esse sentimento de acolhimento, união, empatia e preocupação construído e partilhado socialmente. O amor revolucionário deve ser o compartilhamento das diversas vivências e o cuidado com o próximo, seja com um cônjuge, um familiar, um amigo e todos aqueles que nos rodeiam, íntimos ou desconhecidos. É um sentimento que deve ser construído e achar o seu pertencimento coletivamente, superando o individualismo e não a individualidade, como dito pelo camarada Galo de Luta. Paulo Freire também contribui para a caracterização desse sentimento com a sua frase “Estar no mundo necessariamente significa estar com o mundo e com os outros.”
Para além das questões de gênero e sexualidade, é importante buscarmos debater com quem sofre com as consequências da colonização do nosso país, como o povo negro e os povos originários, que resistem e permanecem na luta contra violências históricas. De acordo com o portal Geledes [3], a população negra é a mais afetada pelas desigualdades e violências no Brasil, enfrentando dificuldades relacionadas à progressão de carreira e igualdade salarial, sendo mais vulneráveis em relação ao assédio moral. Nas estatísticas do mapa da violência de 2017, pessoas negras também possuem a maior chance de serem vítimas de homicídio e ainda estão entre os 67% da população que recebe salário mínimo equivalente a R$1.400,00. A PEC das Drogas é um reforço importante para a manutenção do racismo, como podemos verificar num artigo do portal Agência Pública [4] informando que a população negra tem um número maior de condenações portando uma quantidade inferior de drogas durante a apreensão. Nos casos de apreensão por maconha realizados em 2017 foram 71,5% negros condenados com apreensão média de 145,2g. Enquanto 64% dos brancos foram condenados com porte médio de 1,14kg de maconha. O resultado disso é um encarceramento em massa que retroalimenta a violência em diversas esferas sociais. Podemos também mencionar as comunidades terapêuticas que cumprem esse papel de afastar o indivíduo da sociedade e colocá-lo num espaço de desumanização.
A cultura dos afetos, guiada pelo amor revolucionário e socialista, é uma ferramenta poderosa para superarmos estruturas e instituições burguesas e racistas que insistem em matar, invisibilizar, encarcerar pessoas pretas e indígenas.
Trazemos a seguir três exemplos práticos e concretos do que estamos falando: O primeiro, acontece durante um trabalho realizado no Território Sagrado, uma área de retomada indígena em Piraquara/PR que, após invasão colonialista para explorar os recursos naturais, está novamente sob os cuidados dos povos originários para proteção e recuperação da vida do local. Este é um grupo que permanece em luta mesmo sofrendo diariamente ataques e deslegitimação, militando orgânica e organizadamente pela preservação da sua terra e cultura, por meio de suas ações coletivas de reflorestamento que buscam garantir a todos qualidade de vida e conscientização de preservação da natureza.
Contexto explicado, o fato se dá em um evento com a participação do coletivo Apora-ete, da própria comunidade, em que uma de nossas militantes interessou-se por uma camiseta vendida pelo coletivo indígena. Após perceber que não tinha todo o dinheiro para pagar, o coletivo deixou que a militante pagasse quando tivesse o valor. Após a militante sentir-se mal com a situação, ela foi confortada pela responsável pelos produtos com o saber:
"Devemos acreditar e confiar nas pessoas".
Esse gesto, ilustra uma demonstração de afeto e confiança em alguém que tinha acabado de conhecer, sendo isso pouco comum dentro da nossa sociedade. Quando uma comunidade se organiza em torno de uma lógica amorosa, todos são afetados por isso.
Outro exemplo, vem de alguém que temos como uma referência, uma grande militante na nossa organização. Mulher preta, líder comunitária da Vila Joanita, uma ocupação com mais de 30 anos de existência em Curitiba, que agora é muito visada pela especulação imobiliária. Essa liderança tem lutado incansavelmente pelo seu direito e de mais de 400 famílias. Inspiração de coragem para todos, mas também de afeto e acolhimento, mesmo com a ascensão e manutenção do bolsonarismo naquele meio social, segue escrevendo com as próprias mãos e suor a história de luta pelo acesso à saúde, escolas, qualidade de vida, lazer, dentre outras atividades.
Para finalizar, outro dos nossos militantes passou por uma situação que pode complementar a nossa discussão: ao entrar num ônibus do transporte coletivo de Curitiba, percebeu um sujeito em situação de rua, deitado nos três últimos assentos, enrolado em dois cobertores. Num primeiro momento, não ouviu nenhum comentário a respeito da situação, porém, um grupo de três mulheres deixaram nítido o seu desconforto ao embarcar. Em meio às reclamações, uma delas comentou: “Poderia ir dormir lá fora”.
É perceptível que estamos imersos numa sociedade apática frente a vários problemas sociais, onde esse amor revolucionário ainda deve avançar para chegarmos ao ponto de que o “eu não tenho onde sentar” não incomode mais do que o “ele não tem onde dormir”.
O amor revolucionário é um sentimento que norteia as ações e políticas da Revolução Socialista. É um compromisso não só da Juventude do partido, mas de todas as nossas frentes, lutar e criar uma cultura dos afetos capaz de acolher e unir a nossa classe, respeitando e acolhendo a sua ampla diversidade e entendendo seus processos históricos a fim de criar uma sociedade onde a dignidade e os direitos não sejam um pedido e sim uma garantia.
"Paz, amor revolucionário e afeto entre nós, guerra aos senhores"
Verso adaptado do hino da Internacional.
Referências:
[1] FEMINICÍDIOS EM 2023 - disponível em: https://fontesegura.forumseguranca.org.br/feminicidios-em-2023/#:~:text=De%20acordo%20com%20o%20levantamento,desde%20a%20tipifica%C3%A7%C3%A3o%20da%20lei
[2] Crimes de feminicídio ocorridos no Distrito Federal em 2019 - disponível em: https://noticias.unb.br/artigos-main/3947-crimes-de-feminicidio-ocorridos-no-distrito-federal-em-2019
[3] Seis estatísticas que mostram o abismo racial no brasil - disponível em:
[4] Negros são mais condenados por tráfico de drogas em São Paulo - disponível em: https://apublica.org/2019/05/negros-sao-mais-condenados-por-trafico-e-com-menos-drogas-em-sao-paulo/#
Comments